Tempo de Maria


CASO PLUVIOSO

A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que Maria é que chovia.

A chuva era Maria. E cada pingo
de Maria ensopava o meu domingo.

E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.

Eu era todo barro, sem verdura…
Maria, chuvosíssima criatura!

Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.

Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa… Nossa!

Não me chovas, Maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.

Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!

Eu lhe dizia em vão – pois que Maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.

E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,

que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.

Chuvadeira Maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

Eu lhe gritava: Pára! e ela chovendo,
poças dágua gelada ia tecendo.

Choveu tanto Maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa

e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.

E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de Maria mais chuvavam,

de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,

e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.

Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa pasta iam clamando

contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).

Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas dágua mais deliram,

e Maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.

Os navios soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,

e Maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,

e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,

e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, Maria! – e ela parou.

Carlos Drummond de Andrade

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Sobre este blog

“Nós que não estamos aqui só a passeio...” Temos um árduo caminho a percorrer. Um caminho cheio de altos e baixos, cheio de desafios, de obstáculos, de alegrias e descobrimentos. O caminho leva ao sacrifício que muitas vezes implica em solidão. Mas, envolvidos em uma atmosfera inebriante, buscamos o que nos move: amor, paixões, sonhos... não importa. Iniciamos o processo, seguimos o caminho e ao longo dele nos deparamos com outros que também estão em busca de si. É assim que começamos a dividir, conhecer, acrescentar, compartilhar... experiências, momentos, vidas e prosas.

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