Todas as cartas de amor...


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)





Álvaro de Campos, 21/10/1935

Poema sem marcador

NARCISO

Quando Narciso mirou-se ao lago
Apaixonou-se por sua imagem
E na ilusão segue cativo
O que se passara comigo?

Narciso não se errou ao lago
Pois via uma paixão presente
Na bela imagem ardente ao espelho
O que sentira em meu desejo?

Narciso viu Narciso ao lago
Com seu olhar apaixonado
E se compraz em seu convívio
O que me enganara ao que vivo?

João

Grande voz feminina I - Wisława Szymborska


AUTONOMIA

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.




AMOR À PRIMEIRA VISTA


Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.

Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?

Punhos de poeta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.
 

 

O TERRORISTA, ELE OBSERVA 

A bomba explodirá no bar às treze e vinte.
Agora são apenas treze e dezesseis.
Alguns terão ainda tempo para entrar;
alguns, para sair.
O terrorista já está do outro lado da rua.
A distância o protege de qualquer perigo.
E, bom, é como assistir a um filme.
Uma mulher de casaco amarelo, ela entra.
Um homem de óculos escuros, ele sai.
Jovens de jeans, eles conversam
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele mais baixo, ele se salvou, sai de lambreta.
E aquele mais alto, ele entra.
Treze e dezessete e quarenta segundos.
A moça ali, ela tem uma fita verde no cabelo.
Mas o ônibus a encobre de repente.
Treze e dezoito.
A moça sumiu.
Era tola o bastante para entrar, ou não?
Saberemos quando retirarem os corpos. Treze e dezenove.
Ninguém mais parece entrar.
Um careca obeso, no entanto, está saindo.
Procura algo nos bolsos e
às treze e dezenove e cinqüenta segundos
ele volta para pegar suas malditas luvas. São treze e vinte.
O tempo, como se arrasta
É agora.
Ainda não.
Sim, agora.
A bomba, ela explode. 

II

Ela construiu uma muralha para defender a sua fragilidade: um coração cheio de feridas que o tempo ainda não sarou, provocadas por sonhos não realizados e pela infelicidade de não ter um Amor.  Ela fechou-se em um casulo e até acreditou que poderia se tornar melhor através da solidão. Mas esqueceu que era humana e, como tal, tinha em sua essência a necessidade de sentir. E essa foi a brecha que ele precisava para entrar em seu mundo. O coração dele era ainda mais calejado. Sentiu na pele a amargura dos beijos falsos, dos olhares indiferentes, das palavras cruéis. Mesmo assim, ele acreditava num tal Amor verdadeiro e numa tal felicidade que ela só conhecia nos sonhos. Ela preferia sonhar a viver. Ele insistia que era possível sonhar, viver e realizar. Ele a assustava com suas estranhas manias, mas a conquistava com a sua coragem. Aos poucos, ela foi se acostumando aos carinhos dele, já não era mais tão arredia às suas palavras, permitiu-se expressar algumas emoções. Os corações deles passaram a bater no mesmo ritmo e logo estavam sonhando juntos. Ela estranhou quando percebeu que estava trazendo os planos para a vida real: eles caíram tentação de planejar e, apesar dos medos, já não podiam voltar atrás.

A última lágrima

Essa é a última lágrima que derramo por ti.

A última lágrima que cai dos meus olhos
pela lembrança dos teus beijos, dos teus abraços,
do teu sorriso e do teu olhar.
É a última lágrima que derramo
por quem nunca soube me amar.

Pois hoje sei que em teus olhos o sonho que vi
só existia na minha cabeça e só assim
pude compreender porque chegou ao fim.

Agora sei que o meu lamento
nunca chegou aos teus ouvidos,
como aqueles momentos,
nunca chegaram ao teu coração.

O único sentimento que existia
era a tua falsidade crua e fria
desprovida de qualquer emoção.

Essa é a última lágrima que derramo por ti.

E sei, amado, que não vou mais sofrer
pois não posso padecer por alguém
que, por seus motivos,
não pode me ter.

Ainda que arda em meu peito
a dor de ver partir
não sentirei mais falta
do Amor que não houve em ti.

E aquelas lembranças
esconderei no fundo da memória
até que um dia, quem sabe, possam ir embora
assim como foste, querido, para nunca mais voltar.

E toda vez que as lágrimas voltarem aos meus olhos
lembrarei que foi falso o teu Amor, foi ilusório
não valeu a pena sofrer por te amar.

Maria de Beauté





Sobre este blog

“Nós que não estamos aqui só a passeio...” Temos um árduo caminho a percorrer. Um caminho cheio de altos e baixos, cheio de desafios, de obstáculos, de alegrias e descobrimentos. O caminho leva ao sacrifício que muitas vezes implica em solidão. Mas, envolvidos em uma atmosfera inebriante, buscamos o que nos move: amor, paixões, sonhos... não importa. Iniciamos o processo, seguimos o caminho e ao longo dele nos deparamos com outros que também estão em busca de si. É assim que começamos a dividir, conhecer, acrescentar, compartilhar... experiências, momentos, vidas e prosas.

Maria de Beauté


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